Ontem, 3 de janeiro de 2014, estive em um bar/restaurante.
Lá ocorreu um episódio que ensejou diversas reflexões. O bar estava lotado e
não encontrávamos lugar para sentar. Também pudera, era uma sexta-feira a noite
e este é um dos bares mais tradicionais de Brasília. Em nossa peregrinação a
procura de um lugar, aconteceram diversas coisas, mas uma me chamou a atenção.
Quando encontramos uma mesa, em um lugar mais distante do centro, olhei ao
redor e percebi que, na verdade, aquela mesa não pertencia ao bar que pretendíamos,
mas a outro, que era bem menor, contíguo a este, com poucas mesas. Este bar já
estava, aliás, encerrando suas atividades da noite. Ao perceber que a mesa não
pertencia ao bar escolhido, disse em voz alta ao aos meus amigos: “Ah não, pessoal,
esta mesa não é do mesmo bar, é do outro.” O dono desse outro bar, que
observava toda a movimentação, como que cansado de assistir a mesma cena de ver
pessoas confundindo o seu bar, respondeu também em voz alta: “Não, este não é o
outro. O outro é aquele lá.”, apontando para o lugar de onde viéramos.
Ao pronunciar a palavra outro, eu não percebi o quanto havia sido ofensivo. Esta palavra, em sua sutileza e em seu papel político e sociológico, havia sido aplicada pejorativamente, principalmente pelo fato de ser repetida insistentemente por clientes do outro bar, que fazem a mesma confusão. Ei, olha só, aquele, o nosso bar, o escolhido, se tornou o outro. Talvez tenha sido este o objetivo que do cara que protestou, rejeitando a pecha de ser O OUTRO.
Ao pronunciar a palavra outro, eu não percebi o quanto havia sido ofensivo. Esta palavra, em sua sutileza e em seu papel político e sociológico, havia sido aplicada pejorativamente, principalmente pelo fato de ser repetida insistentemente por clientes do outro bar, que fazem a mesma confusão. Ei, olha só, aquele, o nosso bar, o escolhido, se tornou o outro. Talvez tenha sido este o objetivo que do cara que protestou, rejeitando a pecha de ser O OUTRO.
Afinal,
não queremos ser o outro. Quem quer ser o outro? Ou pior ainda, a outra? Aliás,
esta frase é quase um bordão: “Eu não quero ser a outra.” É a história da mulher
que não quer ser a amante, em oposição à esposa, casada oficialmente com o homem.
Neste caso, a mulher é duplamente penalizada, uma vez pelo machismo que
recorrentemente envolve a relação heterossexual no Brasil, e outra por não ser
a mulher oficial, aquela chancelada pela igreja, carimbada pelo Estado,
reconhecida pela “sociedade”.
Em uma
sociedade machista e homofóbica, a mulher é, por excelência, a outra, a esposa
do homem, o seu apoio, a mãe dos filhos do homem, aquela que produz os descendentes
do homem, do pai, garantindo a perpetuação do seu patrimônio, da herança. O pai
é aquele que patrocina, o patrono, o patrão, o padre, o patriota, a mãe é a outra,
reduz-se ao matrimônio. A amante é duas vezes a outra, a outra por ser mulher e
a outra por ser secundária, substituta e precária em relação à mulher chancelada
pela igreja, aquela escolhida, a esposa legítima, a que está ao lado da lei e
do direito, mesmo que distante do ponto de vista afetivo e sexual.
Há
sociólogos que acreditam que o outro é essencial para o processo identitário,
que nós afirmamos a nossa identidade em relação ao outro, a partir das
diferenciações que observamos em relação ao outro. Por exemplo, o Brasil é
conhecido com o país do futebol e do carnaval. Nos outros países, as pessoas
não curtem o futebol e o carnaval tanto quanto os brasileiros. Eles são os
outros, os estrangeiros, aqueles que não falam a nossa a língua, que não conseguem
se comunicar adequadamente conosco, que não gostam das mesmas coisas que nós,
não têm os mesmo costumes, hábitos, crenças e valores. Evidentemente, esta tese
traz inúmeras contradições. Ao identificar o Brasil como país do futebol e do
carnaval, não estamos excluindo apenas os estrangeiros que, em tese, não curtem
essas coisas tanto quanto os brasileiros, mas estamos excluindo também milhões
de pessoas, que apesar de serem brasileiros e viverem no Brasil, não gostam de
futebol e carnaval. Vendo desta maneira, percebemos que o outro não é somente o
estrangeiro, mas também o brasileiro que não se curva à maioria, não aceita
como seus os ditos “ícones da cultura brasileira”. O que fazer com estes
outros, tão incômodos quanto aqueles outros? Expatriá-los? Expulsá-los do
Brasil? Ou isso ou reconhecer que o Brasil não é apenas o país do futebol e do
carnaval, mas também o país do marabaixo, que é um ritmo típico do Amapá, o
país do aracajé, comida típica da Bahia, o país da polenta, comida típica dos
descendentes de italianos... Ops, eu disse italianos? Mas os italianos não são
brasileiros, são? São sim, por que não?
Um povo
que se afirma em oposição ao outro é um povo que guarda, em alguma medida,
traços de xenofobia. Percebendo isso, alguns sociólogos tem procurado situar o
Brasil de outra maneira, como o país da diversidade, onde o outro é acolhido,
onde o outro é não somente tolerado, mas verdadeiramente respeitado.
É a morte do outro enquanto objeto
de preconceito, enquanto item de especulação filosófica e o nascimento do outro
enquanto ser humano, dotado de forças e fraquezas, sentimentos e desejos que
podem também ser os nossos. É o reconhecimento de que nós fazemos parte do
outro. É perceber que, para o outro, nós somos o outro! “Este não é o outro
bar, o outro é aquele lá.”
O outro está em movimento.
Além do mais, é interessante
observar que o outro está em movimento. E nós, que muitas vezes afirmamos a
identidade em nossa relação com o outro, também estamos em constante movimento.
É importante entender que o outro não é o inimigo, quiçá um adversário, dentro
de um contexto social muito específico. “Quando você se torna obcecado pelo
inimigo, você se torna o inimigo.” É quando o mocinho se torna o vilão. Talvez
tenha sido isso que aconteceu com as autoridades do governo estadunidense, tão
obcecados em guerrear com os terroristas islâmicos que eles agora são acusados
de utilizar as mesmas técnicas que os terroristas: torturas, assassinatos,
espionagem em massa.
Superar o nojo do outro é
reconhecer que há parte do outro em nós. O progresso espiritual depende de
nossa capacidade de nos colocarmos no lugar do outro. Não para nos igualarmos a
ele, mas para entender o que o outro sente, compreender as suas dores e
sofrimentos, bem como os seus sonhos e aspirações, e assim, aprender com ele, apoiá-lo
quando necessário, cooperar quando possível, ao invés de competir e
estigmatizar.
Tony Gigliotti Bezerra
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