quinta-feira, 24 de julho de 2014

Xô show de dança - qual a cultura de quem não tem cultura?

"De acordo com a pesquisa SIPS – IPEA, realizada em 2010, 59,3% dos brasileiros nunca foram ao teatro, circo ou “show de dança”. Trata-se de uma abordagem de pesquisa que denota, por um lado, a preferência por manifestações culturais que privilegiam o distanciamento em palco e platéia e, por outro, a espetacularização do fazer cultural."

Segue abaixo, texto escrito como tarefa do Curso de Formações de Gestores Culturais dos Estados do Nordeste, após módulo sobre políticas setoriais e imersão cultural no Museu da Gente Sergipana, em junho de 2014.
Enunciado: Tendo em vista a discussão sobre públicos da cultura, o contato com diversas linguagens artísticas e com o Museu da Gente Sergipana, faça uma reflexão sobre os desafios que a conquista de públicos coloca para os gestores de cultura.
           
A conquista de público para os equipamentos e apresentações culturais realizadas e incentivas pelo Estado envolvem diversos desafios, tanto do ponto de vista da quantidade quanto da qualidade. O texto de Isaura Botelho e Maria Carolina Vasconcelos Oliveira (Centros Culturais e a formação de novos públicos) enseja diversas reflexões sobre o conceito de manifestação cultural e artística e o significado da palavra público. Neste contexto, busca-se analisar o Museu da Gente Sergipana e suas estratégias de relação com o público.
           Os conceitos de manifestação cultural e de público não são fixos e estanques. Eles são tão dinâmicos quanto a própria cultura. Uma situação emblemática ocorre quando os técnicos dos institutos de pesquisa perguntam às pessoas se elas já foram a um “show de dança”. A grande maioria responde que não. Isso porque elas desconsideram, por exemplo, as danças que ocorrem em sua própria comunidade, como o forró, o frevo ou o maracatu. A expressão “show de dança” remete a uma idéia de distanciamento entre palco e platéia, que não ocorre nestes tipos de dança. Em regra, qualquer pessoa já viu alguém dançar, sendo esta uma das mais espontâneas manifestações culturais, presente em inúmeras etnias. A abordagem da pesquisa, no entanto, faz com que as pessoas se sintam marginalizadas do fazer cultural, quando, na verdade, é o próprio método de pesquisa que valoriza uma manifestação cultural em detrimento de outra.
De acordo com a pesquisa SIPS – IPEA, realizada em 2010, 59,3% dos brasileiros nunca foram ao teatro, circo ou “show de dança”. Trata-se de uma abordagem de pesquisa que denota, por um lado, a preferência por manifestações culturais que privilegiam o distanciamento em palco e platéia e, por outro, a espetacularização do fazer cultural. Os shows e mega-produções são valorizadas em detrimento das manifestações artísticas do cotidiano, como a escolha do figurino ou vestimenta, a representação dos papéis sociais nos diversos contextos de trabalho e lazer ou até mesmo as inovações realizadas ao se selecionar e preparar os alimentos. A própria expressão “show de dança” é reflexo do anglicismo e da preferência pelas expressões culturais européias, especialmente dentro de formatações inglesas e francesas. Desse modo, este tipo de pesquisa acaba colaborando para que os cidadãos mais pobres se sintam marginalizados do fazer político e cultural. Isso porque os seus hábitos e práticas não são reconhecidos enquanto manifestação artística. A pesquisa SIPS – IPEA não perguntou, por exemplo, se a pessoa tem o hábito de ir à feira livre ou de conversar com o seu vizinho. Não seriam estas manifestações culturais tão importantes quanto ir ao teatro ou ao cinema?
            As políticas culturais muitas vezes não conseguem acompanhar o dinamismo do fazer cultural. Com as novas tecnologias de comunicação, novos ritmos, hábitos e práticas surgem e desaparecem com uma rapidez maior do que a capacidade dos gestores culturais de compreendê-las e utilizá-las na formulação das políticas. Um exemplo disso é o uso de redes sociais. Em poucas semanas, milhões de usuários do Orkut migraram para o Facebook, em um verdadeiro movimento de massas. A invenção de aplicativos para celulares também tem causado mudanças importantes nos hábitos das pessoas.
            A atuação do Estado na formação de público tem sido atrelada, historicamente, a uma promoção da cultura erudita e repressão da cultura popular. No Rio de Janeiro, por exemplo, os bailes funk foram proibidos e duramente reprimidos nos últimos anos, por uma suposta ligação com o tráfico de drogas. Projeto de lei do deputado Marcelo Freixo conseguiu reverter a proibição dos bailes. Isso mostra que o Estado ora atua na formação ora na repressão do público. Via de regra, opta por incentivar a formação de público para manifestações artísticas altamente aderentes ao sistema político e econômico vigente, como a música clássica e os museus, que via de regra contam a história a partir da versão dos vencedores, que estão no poder.
            O Museu da Gente Sergipana não está isento destas contradições, embora seja uma instituição que busca agregar novos públicos.          Uma das grandes qualidades do museu é a interatividade. Por meio de diversos mecanismos, a instituição busca aumentar a interação entre o público e o acervo. Um exemplo é a possibilidade de a pessoa gravar a declamação de um cordel e depois postar o vídeo no canal do museu no youtube. Desse modo, o público não é tratado como mero consumidor de cultura, mas sim como ator e fruidor.   
            No museu, chama a atenção a homenagem à Zé do Peixe, ex-funcionário da Marinha, que se tornou muito conhecido por nadar grandes distâncias indicando o caminho para as embarcações que precisavam ingressar no leito do Rio Sergipe, desviando dos bancos de areia. A exposição sobre Zé do Peixe é fruto de seu grande reconhecimento por parte da população local, e tem se tornado um mito em poucos anos após a sua desencarnação. Não se trata de uma homenagem oficialesca, mas de acolher um sentimento vindo do próprio povo, no sentido de manter viva a memória de um de seus cidadãos mais corajosos e emblemáticos.

            O museu também se destaca por agregar em seu espaço apresentações e manifestações da cultura popular sergipana. Trata-se de uma estratégia para tornar o museu mais visitado e reconhecido pela população. Desse modo, a formação de público envolve diversos desafios que vão muito além do número de freqüentadores, passando pelo processo de formação educacional das pessoas e do tipo de hábito cultural que desenvolvem. A cultura não é politicamente neutra. Muito pelo contrário, quando menos fala sobre política é quando mais se fala sobre política. Arte e política são inseparáveis, de modo que linguagens culturais aparentemente neutras podem estar a serviço da manutenção do sistema político tal como ele está colocado.