"De acordo com a pesquisa SIPS – IPEA, realizada em 2010, 59,3% dos brasileiros nunca foram ao teatro, circo ou “show de dança”. Trata-se de uma abordagem de pesquisa que denota, por um lado, a preferência por manifestações culturais que privilegiam o distanciamento em palco e platéia e, por outro, a espetacularização do fazer cultural."
Segue
abaixo, texto escrito como tarefa do Curso de Formações de Gestores Culturais
dos Estados do Nordeste, após módulo sobre políticas setoriais e imersão
cultural no Museu da Gente Sergipana, em junho de 2014.
Enunciado:
Tendo em vista a discussão sobre públicos da cultura, o contato com diversas
linguagens artísticas e com o Museu da Gente Sergipana, faça uma reflexão sobre
os desafios que a conquista de públicos coloca para os gestores de cultura.
A conquista de público para os equipamentos e apresentações culturais
realizadas e incentivas pelo Estado envolvem diversos desafios, tanto do ponto
de vista da quantidade quanto da qualidade. O texto de Isaura Botelho e Maria
Carolina Vasconcelos Oliveira (Centros Culturais e a formação de novos
públicos) enseja diversas reflexões sobre o conceito de manifestação cultural e
artística e o significado da palavra público. Neste contexto, busca-se analisar
o Museu da Gente Sergipana e suas estratégias de relação com o público.
Os conceitos de manifestação
cultural e de público não são fixos e estanques. Eles são tão dinâmicos quanto
a própria cultura. Uma situação emblemática ocorre quando os técnicos dos
institutos de pesquisa perguntam às pessoas se elas já foram a um “show de
dança”. A grande maioria responde que não. Isso porque elas desconsideram, por
exemplo, as danças que ocorrem em sua própria comunidade, como o forró, o frevo
ou o maracatu. A expressão “show de dança” remete a uma idéia de distanciamento
entre palco e platéia, que não ocorre nestes tipos de dança. Em regra, qualquer
pessoa já viu alguém dançar, sendo esta uma das mais espontâneas manifestações
culturais, presente em inúmeras etnias. A abordagem da pesquisa, no entanto,
faz com que as pessoas se sintam marginalizadas do fazer cultural, quando, na
verdade, é o próprio método de pesquisa que valoriza uma manifestação cultural
em detrimento de outra.
De acordo com a pesquisa SIPS –
IPEA, realizada em 2010, 59,3% dos brasileiros nunca foram ao teatro, circo ou
“show de dança”. Trata-se de uma abordagem de pesquisa que denota, por um lado,
a preferência por manifestações culturais que privilegiam o distanciamento em
palco e platéia e, por outro, a espetacularização do fazer cultural. Os shows e mega-produções são
valorizadas em detrimento das manifestações artísticas do cotidiano, como a
escolha do figurino ou vestimenta, a representação dos papéis sociais nos
diversos contextos de trabalho e lazer ou até mesmo as inovações realizadas ao
se selecionar e preparar os alimentos. A própria expressão “show de dança” é
reflexo do anglicismo e da preferência pelas expressões culturais européias,
especialmente dentro de formatações inglesas e francesas. Desse modo, este tipo
de pesquisa acaba colaborando para que os cidadãos mais pobres se sintam
marginalizados do fazer político e cultural. Isso porque os seus hábitos e
práticas não são reconhecidos enquanto manifestação artística. A pesquisa SIPS
– IPEA não perguntou, por exemplo, se a pessoa tem o hábito de ir à feira livre
ou de conversar com o seu vizinho. Não seriam estas manifestações culturais tão
importantes quanto ir ao teatro ou ao cinema?
As políticas culturais muitas vezes
não conseguem acompanhar o dinamismo do fazer cultural. Com as novas
tecnologias de comunicação, novos ritmos, hábitos e práticas surgem e
desaparecem com uma rapidez maior do que a capacidade dos gestores culturais de
compreendê-las e utilizá-las na formulação das políticas. Um exemplo disso é o
uso de redes sociais. Em poucas semanas, milhões de usuários do Orkut migraram
para o Facebook, em um verdadeiro movimento de massas. A invenção de
aplicativos para celulares também tem causado mudanças importantes nos hábitos
das pessoas.
A atuação do Estado na formação de
público tem sido atrelada, historicamente, a uma promoção da cultura erudita e
repressão da cultura popular. No Rio de Janeiro, por exemplo, os bailes funk
foram proibidos e duramente reprimidos nos últimos anos, por uma suposta
ligação com o tráfico de drogas. Projeto de lei do deputado Marcelo Freixo
conseguiu reverter a proibição dos bailes. Isso mostra que o Estado ora atua na
formação ora na repressão do público. Via de regra, opta por incentivar a
formação de público para manifestações artísticas altamente aderentes ao
sistema político e econômico vigente, como a música clássica e os museus, que
via de regra contam a história a partir da versão dos vencedores, que estão no
poder.
O Museu da Gente Sergipana não está
isento destas contradições, embora seja uma instituição que busca agregar novos
públicos. Uma das grandes
qualidades do museu é a interatividade. Por meio de diversos mecanismos, a
instituição busca aumentar a interação entre o público e o acervo. Um exemplo é
a possibilidade de a pessoa gravar a declamação de um cordel e depois postar o
vídeo no canal do museu no youtube. Desse modo, o público não é tratado como
mero consumidor de cultura, mas sim como ator e fruidor.
No museu, chama a atenção a
homenagem à Zé do Peixe, ex-funcionário da Marinha, que se tornou muito
conhecido por nadar grandes distâncias indicando o caminho para as embarcações
que precisavam ingressar no leito do Rio Sergipe, desviando dos bancos de
areia. A exposição sobre Zé do Peixe é fruto de seu grande reconhecimento por
parte da população local, e tem se tornado um mito em poucos anos após a sua
desencarnação. Não se trata de uma homenagem oficialesca, mas de acolher um
sentimento vindo do próprio povo, no sentido de manter viva a memória de um de
seus cidadãos mais corajosos e emblemáticos.
O museu também se destaca por
agregar em seu espaço apresentações e manifestações da cultura popular
sergipana. Trata-se de uma estratégia para tornar o museu mais visitado e
reconhecido pela população. Desse modo, a formação de público envolve diversos
desafios que vão muito além do número de freqüentadores, passando pelo processo
de formação educacional das pessoas e do tipo de hábito cultural que
desenvolvem. A cultura não é politicamente neutra. Muito pelo contrário, quando
menos fala sobre política é quando mais se fala sobre política. Arte e política
são inseparáveis, de modo que linguagens culturais aparentemente neutras podem
estar a serviço da manutenção do sistema político tal como ele está colocado.