terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Não vou viajar no réveillon


    Não vou viajar no réveillon.

                Esta frase geralmente é dita com certo tom de frustração ou resignação. A visão dominante na sociedade é que as pessoas devem viajar no réveillon. Não é por outro motivo que milhões de pessoas saem de suas cidades em direção a outras cidades, muitas vezes praianas. Não é por outro motivo que, todos os anos, geram-se congestionamentos de centenas de quilômetros nas estradas do país, milhares de acidentes ocorrem e muitas pessoas morrem. Mas por quê?

                São diversas as condicionantes sociais e culturais que levam as pessoas a crerem que devem viajar no réveillon. Uma delas é mentalidade de que a felicidade está fora da sua cidade, que a felicidade está fora de si. A idéia de que a chegada do ano novo é um momento especial e que, por isso, deve ser vivenciado em um lugar especial. Mas por que não pensar que a sua cidade é um lugar especial? Por que não pensar que sua casa é um lugar especial?

                Buda ousou dizer: “a felicidade está dentro de você, não adianta buscá-la ao seu redor.” Muitas vezes, confunde-se felicidade com euforia, o estouro da champanhe, o brinde, a gritaria, os desejos de feliz ano ano, com frases feitas, do tipo: “Feliz ano novo. Muita saúde, paz, amor, alegria... Tudo de bom pra você...” O marasmo do dia-a-dia é repentinamente quebrado por uma falsa sensação de catarse, uma euforia coletiva contagiante, que faz a pessoas pensarem que o início do ano é mais importante que todo resto. Que faz as pessoas usarem branco simbolizando a paz, a paz que elas, muitas vezes, não ousam vivenciar em seu cotidiano.

                Mas por quê?
                Por que tanta coisa, tanto marketing, tanta propaganda, tanta gritaria, tanto champanhe, tanta viagem, tanta fugacidade? Bem, acho que o sentimento de fugacidade ajuda a explicar por que a pessoas querem viajar no réveillon. Fugacidade é a vontade de fugir. Fugir de si mesmo, dos seus problemas, das frustrações acumuladas durante o ano todo, fugir dos traumas e dos medos, fugir da sua casa, da sua cidade, fugir de si mesmo, fugir da miséria causada por tamanha abundância, fugir da injustiça, da desigualdade, fugir da sua própria raiva.

                Se entrarmos mais a fundo na questão, veremos que a própria idéia de comemoração do réveillon é fruto de um traço cultural muito específico nosso. Apesar de a contagem dos anos ser proporcionada por fenômenos físicos, os movimentos da Terra em relação ao Sol, nada obriga as pessoas a comemorarem o início de um novo ano. Da mesma maneira que nada obriga as pessoas a comemorarem o dia de seus aniversários. O réveillon é como um aniversário coletivo, é como que todo mundo se despedisse do velho para aguardar o novo. Mas o que é o novo?

                O novo também é um fenômeno essencialmente cultural. Salomão ousou questionar o novo quando afirmou, no livro do eclesiastes: “Não há nada de novo debaixo do sol (...) Tudo é fugaz, e uma corrida atrás do vento”. As coisas geralmente apontadas como novas, pela mídia, nada mais são do que a repetição das velhas notícias, apresentadas com uma nova roupagem. Qual a diferença entre o campeão deste ano em relação ao campeão do ano passado? Nenhuma. As partes entram em conflito por almejarem o mesmo objetivo. O mais importante não é se o vencedor será o flamengo ou o botofogo, o mais importante é que os times entram em disputa um com outro, por almejarem o mesmo objetivo, que é a vitória. Mas a vitória, neste caso, é apresentada como um recurso escasso, um jogo de soma zero, ou seja, um só pode ganhar se outro perder. É possível que eles não entrassem em disputa e ambos se considerassem campeões? Evidente que sim. Da mesma maneira, é possível que eles entrem em disputa e ambos sejam campeões, um em determinado ano e o opositor no outro ano. A vitória exclusiva, num jogo de soma zero, é algo altamente conjuntural, contingencial e precário.   

                Enfim, não vou viajar neste réveillon. E isso também é uma forma de questionar a visão predominante, de que o réveillon seja um momento e catarse ou de ruptura. Quero que o ano chegue de mansinho, sem bater na porta, sem contagem regressiva, sem o branco de uma paz racista, sem fogos de desperdícios ou gritarias de agitação, sem champanhe, sem embriaguez.


                Quero um réveillon diferente, com a cor intensa de uma paz multicultural, de um ano que chegue novo, mas que saiba utilizar, para o bem, todas as experiências dos anos que já passaram. Que as pessoas se lembrem que nós não somos seres materiais com um conteúdo espiritual, mas que somos seres essencialmente espirituais, vestidos temporariamente com um invólucro biológico, a que chamamos de corpo. Que este corpo um dia vai falhar, mas que a jornada continua.