Não vou viajar no réveillon.
Esta
frase geralmente é dita com certo tom de frustração ou resignação. A visão
dominante na sociedade é que as pessoas devem viajar no réveillon. Não é por
outro motivo que milhões de pessoas saem de suas cidades em direção a outras
cidades, muitas vezes praianas. Não é por outro motivo que, todos os anos, geram-se
congestionamentos de centenas de quilômetros nas estradas do país, milhares de
acidentes ocorrem e muitas pessoas morrem. Mas por quê?
São
diversas as condicionantes sociais e culturais que levam as pessoas a crerem
que devem viajar no réveillon. Uma delas é mentalidade de que a felicidade está
fora da sua cidade, que a felicidade está fora de si. A idéia de que a chegada
do ano novo é um momento especial e que, por isso, deve ser vivenciado em um
lugar especial. Mas por que não pensar que a sua cidade é um lugar especial?
Por que não pensar que sua casa é um lugar especial?
Buda
ousou dizer: “a felicidade está dentro de você, não adianta buscá-la ao seu
redor.” Muitas vezes, confunde-se felicidade com euforia, o estouro da
champanhe, o brinde, a gritaria, os desejos de feliz ano ano, com frases
feitas, do tipo: “Feliz ano novo. Muita saúde, paz, amor, alegria... Tudo de
bom pra você...” O marasmo do dia-a-dia é repentinamente quebrado por uma falsa
sensação de catarse, uma euforia coletiva contagiante, que faz a pessoas
pensarem que o início do ano é mais importante que todo resto. Que faz as
pessoas usarem branco simbolizando a paz, a paz que elas, muitas vezes, não
ousam vivenciar em seu cotidiano.
Mas por
quê?
Por que
tanta coisa, tanto marketing, tanta propaganda, tanta gritaria, tanto
champanhe, tanta viagem, tanta fugacidade? Bem, acho que o sentimento de
fugacidade ajuda a explicar por que a pessoas querem viajar no réveillon.
Fugacidade é a vontade de fugir. Fugir de si mesmo, dos seus problemas, das
frustrações acumuladas durante o ano todo, fugir dos traumas e dos medos, fugir
da sua casa, da sua cidade, fugir de si mesmo, fugir da miséria causada por
tamanha abundância, fugir da injustiça, da desigualdade, fugir da sua própria
raiva.
Se
entrarmos mais a fundo na questão, veremos que a própria idéia de comemoração
do réveillon é fruto de um traço cultural muito específico nosso. Apesar de a
contagem dos anos ser proporcionada por fenômenos físicos, os movimentos da
Terra em relação ao Sol, nada obriga as pessoas a comemorarem o início de um
novo ano. Da mesma maneira que nada obriga as pessoas a comemorarem o dia de
seus aniversários. O réveillon é como um aniversário coletivo, é como que todo
mundo se despedisse do velho para aguardar o novo. Mas o que é o novo?
O novo
também é um fenômeno essencialmente cultural. Salomão ousou questionar o novo
quando afirmou, no livro do eclesiastes: “Não há nada de novo debaixo do sol
(...) Tudo é fugaz, e uma corrida atrás do vento”. As coisas geralmente
apontadas como novas, pela mídia, nada mais são do que a repetição das velhas
notícias, apresentadas com uma nova roupagem. Qual a diferença entre o campeão
deste ano em relação ao campeão do ano passado? Nenhuma. As partes entram em
conflito por almejarem o mesmo objetivo. O mais importante não é se o vencedor
será o flamengo ou o botofogo, o mais importante é que os times entram em disputa
um com outro, por almejarem o mesmo objetivo, que é a vitória. Mas a vitória,
neste caso, é apresentada como um recurso escasso, um jogo de soma zero, ou
seja, um só pode ganhar se outro perder. É possível que eles não entrassem em
disputa e ambos se considerassem campeões? Evidente que sim. Da mesma maneira,
é possível que eles entrem em disputa e ambos sejam campeões, um em determinado
ano e o opositor no outro ano. A vitória exclusiva, num jogo de soma zero, é
algo altamente conjuntural, contingencial e precário.
Enfim,
não vou viajar neste réveillon. E isso também é uma forma de questionar a visão
predominante, de que o réveillon seja um momento e catarse ou de ruptura. Quero
que o ano chegue de mansinho, sem bater na porta, sem contagem regressiva, sem
o branco de uma paz racista, sem fogos de desperdícios ou gritarias de
agitação, sem champanhe, sem embriaguez.
Quero
um réveillon diferente, com a cor intensa de uma paz multicultural, de um ano
que chegue novo, mas que saiba utilizar, para o bem, todas as experiências dos
anos que já passaram. Que as pessoas se lembrem que nós não somos seres
materiais com um conteúdo espiritual, mas que somos seres essencialmente
espirituais, vestidos temporariamente com um invólucro biológico, a que
chamamos de corpo. Que este corpo um dia vai falhar, mas que a jornada
continua.