Hoje, dia 29 de março de 2016, da tribuna do Senado Federal,
Vanessa Graziolim (PCdoB-AM) afirmou que a decisão sobre impeachment da
presidente Dilma deve ser uma decisão técnica. De acordo com sua visão, seria
necessário analisar se houve ou não crime de responsabilidade que, de acordo
com o ordenamento jurídico brasileiro, é o requisito básico para um processo
dessa natureza. Ela sustenta que Dilma não cometeu crime de responsabilidade e,
portanto, não deve ser destituída do cargo de presidente. Simples assim.
Vamos discutir aqui, portanto, uma visão que é muito
difundida no meio jurídico. A visão de que o julgamento feito pelo Poder
Judiciário deve ser imparcial, neutro, isento. A visão de que o julgamento deve
ser fruto de uma aplicação técnica das normas aprovadas pelo Poder Legislativo.
Mesmo no meio jurídico esta visão é muito questionada. Basta ver, por exemplo,
as discussões do jurista José Geraldo de Souza Jr.. professor da Universidade
de Brasília, sobre o “Direito achado na rua”.
Primeiramente, vamos conceituar o que é técnico. Técnico é a
aplicação mecânica de uma determinada regra. Aquilo que é estritamente técnico
dispensa o exercício da razão, tendo em vista que qualquer pessoa que concorda
com aquela regra julgaria da mesma maneira. A questão da técnica e da
imparcialidade são muito caras ao Poder Judiciário. Os juízes, no Brasil, são
escolhidos por concurso público, que é uma avaliação considerada técnica. Eles
não passam por um processo democrático de escolha. Mas se, de acordo com a
Constituição Brasileira, “todo poder emana do povo”, Os juízes não deveriam ser
escolhidos democraticamente pelo povo? O principal argumento para que não haja
eleições para juiz é de que o Poder Judiciário realiza a aplicação técnica das
leis aprovadas pelo Poder Legislativo, sem distinção de qualquer natureza. De
acordo com essa visão, ou com essa cegueira, o juiz deve aplicar igualmente a
lei, “doa a quem doer”. Ou então, “dura lex, sede lex.” Por isso, um dos
principais símbolos do Poder Judiciário, ostentado em escultura nas
proximidades do prédio do Supremo Tribunal Federal, em Brasília (vide foto) é o
de uma pessoa com os olhos vendados. O objetivo é simbolizar a imparcialidade,
neutralidade e isenção da justiça. “A simbologia dessa escultura tem origem na
deusa romana Justiça, que corresponde à grega Dice, filha de Zeus com Têmis, a
guardiã dos juramentos dos homens.” (CORREIO BRASILIENSE apud WIKIPEDIA, 2016)
Um julgamento pode ser técnico? Em parte, pois ele pode partir de uma
aplicação mecânica de determinada regra. Mas a escolha de aplicar a regra é uma
decisão política. Zizek, um dos maiores filósofos da atualidade, explica-nos
que “uma escolha é sempre uma meta-escolha, ou seja, está atrelada a uma
escolha sobre o método de escolho em si. A escolha está atrelada a uma decisão
anterior, de fundo. Antes de escolher entre A e B, é necessário escolher o
método de escolha. Por mais que a escolha entre A e B seja uma decisão
mecânica, ou seja, técnica, a decisão sobre o método de escolha é uma decisão
política, pois implica em relações de poder entre as pessoas. Poder é a
capacidade de influenciar ao outro e a si mesmo. Todas as nossas decisões, por
mais que possuam um verniz técnico, possuem também uma fundamentação política,
ou seja, implica em influenciar ao outro e a si mesmo, uma vez que estamos em
uma complexa teia de relações sociais, culturais, econômicas, ambientais, etc.
Esse é um debate comum também no jornalismo. Muitos
concordam que uma reportagem não pode ser totalmente imparcial, neutra, isenta
e objetiva. Mas acredita-se que a imparcialidade, por mais que não possam ser
atingida, deve ser para sempre buscada, mesmo que enquanto uma utopia. Será que
os jornais deveriam buscar a imparcialidade? Será que os juízes devem buscar a
objetividade? Será que os pesquisadores devem buscar a isenção? Será que os
professores devem buscar a neutralidade? Será que cada um de nós deve buscar,
enquanto objetivo e utopia, a imparcialidade, neutralidade, isenção e
objetividade?
Acredito que não, a imparcialidade absoluta é não somente
inatingível, mas também indesejável.
Devemos reconhecer que, ao observar um objeto, modificamo-lo.
Devemos reconhecer que a fé é capaz de mover montanhas e que, mesmo sem querer,
temos fé em alguma coisa, pois é uma característica intrínseca do espírito
humano. A vontade de ser técnico ou mecânico pode estar relacionada à memória evolutivo
do espírito humano, que, de acordo com Leon Denis, já passou por experiências
no reino mineral, vegetal e animal, antes de chegar ao reino hominal. As pedras
tem a capacidade de serem estritamente técnicas, tendo em vista que conseguem
aplicar, mecanicamente, uma lei da natureza. Ao se arremessar uma pedra, é
possível prever a sua trajetória e seu comportamento. Ao se arremessar um ser
humano, não possível prever, com total segurança, se ele vai espernear ou não,
se ele vai resistir ou não a tentativa de se arremessá-lo.
Ao mesmo tempo, a fé política está relacionada à nossa
natureza dual, à dualidade entre corpo e espírito. A política está relacionada
ao nosso enredamento à vida material. Muitas vezes, a paixão política faz com
que nós percamos a capacidade de compreender o outro lado. “E do outro lado tem
o lado do outro.”
É possível conciliar o técnico com o político? Sim. Sempre
que produzimos uma tese e uma antítese, é possível produzir uma síntese. É
indesejável ser estritamente técnico ou estritamente político. É necessário
buscarmos uma síntese entre o técnico e o político, entre razão e emoção, corpo
e espírito, passado e futuro. Nesse sentido é necessário buscar uma síntese
entre a imparcialidade e a participação, entre a isenção e o engajamento, entre
o neutro e o decorativo, entre a objetividade e a subjetividade.
No processo do impeachment, os parlamentares atuam como
juízes, analisando o cumprimento da lei em um caso concreto. Não desejo que
eles julguem com imparcialidade, nem com neutralidade, nem com objetividade,
nem com isenção, prefiro usar termos menos extremistas e mais sintéticos.
Desejo que eles se lembrem o quanto são parciais, limitados e questionáveis.
Desejo que eles julguem com sabedoria, com isonomia, com inocência, com pureza,
com sinceridade, com serenidade, com bondade.
Não desejo que eles julguem pensando no bem do Brasil,
meramente. Desejo que eles julguem de acordo com os seus interesses e desejo
que os seus interesses estejam integrados aos da maioria dos brasileiros, que
eles sejam capazes de sintonizar a vontade das pessoas e com, parcimônia,
devolvam ao povo o poder de decidir, respeitando a soberania popular. Nesse
sentido, diante do descompasso entre Legislativo e Executivo no atual momento,
pode ser boa a ideia de se convocar eleições gerais antecipadas no Brasil.
Referência:
A Justiça (escultura). Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Justi%C3%A7a_(escultura).
Acesso em: 30 mar. 2016