quarta-feira, 30 de março de 2016

O Impeachment entre o técnico e o político: a escolha técnica em uma decisão política

Hoje, dia 29 de março de 2016, da tribuna do Senado Federal, Vanessa Graziolim (PCdoB-AM) afirmou que a decisão sobre impeachment da presidente Dilma deve ser uma decisão técnica. De acordo com sua visão, seria necessário analisar se houve ou não crime de responsabilidade que, de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, é o requisito básico para um processo dessa natureza. Ela sustenta que Dilma não cometeu crime de responsabilidade e, portanto, não deve ser destituída do cargo de presidente. Simples assim.
Vamos discutir aqui, portanto, uma visão que é muito difundida no meio jurídico. A visão de que o julgamento feito pelo Poder Judiciário deve ser imparcial, neutro, isento. A visão de que o julgamento deve ser fruto de uma aplicação técnica das normas aprovadas pelo Poder Legislativo. Mesmo no meio jurídico esta visão é muito questionada. Basta ver, por exemplo, as discussões do jurista José Geraldo de Souza Jr.. professor da Universidade de Brasília, sobre o “Direito achado na rua”.
Primeiramente, vamos conceituar o que é técnico. Técnico é a aplicação mecânica de uma determinada regra. Aquilo que é estritamente técnico dispensa o exercício da razão, tendo em vista que qualquer pessoa que concorda com aquela regra julgaria da mesma maneira. A questão da técnica e da imparcialidade são muito caras ao Poder Judiciário. Os juízes, no Brasil, são escolhidos por concurso público, que é uma avaliação considerada técnica. Eles não passam por um processo democrático de escolha. Mas se, de acordo com a Constituição Brasileira, “todo poder emana do povo”, Os juízes não deveriam ser escolhidos democraticamente pelo povo? O principal argumento para que não haja eleições para juiz é de que o Poder Judiciário realiza a aplicação técnica das leis aprovadas pelo Poder Legislativo, sem distinção de qualquer natureza. De acordo com essa visão, ou com essa cegueira, o juiz deve aplicar igualmente a lei, “doa a quem doer”. Ou então, “dura lex, sede lex.” Por isso, um dos principais símbolos do Poder Judiciário, ostentado em escultura nas proximidades do prédio do Supremo Tribunal Federal, em Brasília (vide foto) é o de uma pessoa com os olhos vendados. O objetivo é simbolizar a imparcialidade, neutralidade e isenção da justiça. “A simbologia dessa escultura tem origem na deusa romana Justiça, que corresponde à grega Dice, filha de Zeus com Têmis, a guardiã dos juramentos dos homens.” (CORREIO BRASILIENSE apud WIKIPEDIA, 2016)



Um julgamento pode ser técnico? Em parte, pois ele pode partir de uma aplicação mecânica de determinada regra. Mas a escolha de aplicar a regra é uma decisão política. Zizek, um dos maiores filósofos da atualidade, explica-nos que “uma escolha é sempre uma meta-escolha, ou seja, está atrelada a uma escolha sobre o método de escolho em si. A escolha está atrelada a uma decisão anterior, de fundo. Antes de escolher entre A e B, é necessário escolher o método de escolha. Por mais que a escolha entre A e B seja uma decisão mecânica, ou seja, técnica, a decisão sobre o método de escolha é uma decisão política, pois implica em relações de poder entre as pessoas. Poder é a capacidade de influenciar ao outro e a si mesmo. Todas as nossas decisões, por mais que possuam um verniz técnico, possuem também uma fundamentação política, ou seja, implica em influenciar ao outro e a si mesmo, uma vez que estamos em uma complexa teia de relações sociais, culturais, econômicas, ambientais, etc.
Esse é um debate comum também no jornalismo. Muitos concordam que uma reportagem não pode ser totalmente imparcial, neutra, isenta e objetiva. Mas acredita-se que a imparcialidade, por mais que não possam ser atingida, deve ser para sempre buscada, mesmo que enquanto uma utopia. Será que os jornais deveriam buscar a imparcialidade? Será que os juízes devem buscar a objetividade? Será que os pesquisadores devem buscar a isenção? Será que os professores devem buscar a neutralidade? Será que cada um de nós deve buscar, enquanto objetivo e utopia, a imparcialidade, neutralidade, isenção e objetividade?
Acredito que não, a imparcialidade absoluta é não somente inatingível, mas também indesejável.
Devemos reconhecer que, ao observar um objeto, modificamo-lo. Devemos reconhecer que a fé é capaz de mover montanhas e que, mesmo sem querer, temos fé em alguma coisa, pois é uma característica intrínseca do espírito humano. A vontade de ser técnico ou mecânico pode estar relacionada à memória evolutivo do espírito humano, que, de acordo com Leon Denis, já passou por experiências no reino mineral, vegetal e animal, antes de chegar ao reino hominal. As pedras tem a capacidade de serem estritamente técnicas, tendo em vista que conseguem aplicar, mecanicamente, uma lei da natureza. Ao se arremessar uma pedra, é possível prever a sua trajetória e seu comportamento. Ao se arremessar um ser humano, não possível prever, com total segurança, se ele vai espernear ou não, se ele vai resistir ou não a tentativa de se arremessá-lo.
Ao mesmo tempo, a fé política está relacionada à nossa natureza dual, à dualidade entre corpo e espírito. A política está relacionada ao nosso enredamento à vida material. Muitas vezes, a paixão política faz com que nós percamos a capacidade de compreender o outro lado. “E do outro lado tem o lado do outro.”
É possível conciliar o técnico com o político? Sim. Sempre que produzimos uma tese e uma antítese, é possível produzir uma síntese. É indesejável ser estritamente técnico ou estritamente político. É necessário buscarmos uma síntese entre o técnico e o político, entre razão e emoção, corpo e espírito, passado e futuro. Nesse sentido é necessário buscar uma síntese entre a imparcialidade e a participação, entre a isenção e o engajamento, entre o neutro e o decorativo, entre a objetividade e a subjetividade.
No processo do impeachment, os parlamentares atuam como juízes, analisando o cumprimento da lei em um caso concreto. Não desejo que eles julguem com imparcialidade, nem com neutralidade, nem com objetividade, nem com isenção, prefiro usar termos menos extremistas e mais sintéticos. Desejo que eles se lembrem o quanto são parciais, limitados e questionáveis. Desejo que eles julguem com sabedoria, com isonomia, com inocência, com pureza, com sinceridade, com serenidade, com bondade.
Não desejo que eles julguem pensando no bem do Brasil, meramente. Desejo que eles julguem de acordo com os seus interesses e desejo que os seus interesses estejam integrados aos da maioria dos brasileiros, que eles sejam capazes de sintonizar a vontade das pessoas e com, parcimônia, devolvam ao povo o poder de decidir, respeitando a soberania popular. Nesse sentido, diante do descompasso entre Legislativo e Executivo no atual momento, pode ser boa a ideia de se convocar eleições gerais antecipadas no Brasil.

Referência:

A Justiça (escultura). Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Justi%C3%A7a_(escultura). Acesso em: 30 mar. 2016

segunda-feira, 21 de março de 2016

De junho de 2013 a março de 2016: o povo nas ruas por mais direitos

         Os protestos do dia 13 de março (domingo) mostraram a indignação do povo diante da corrupção e da crise econômica. Embora a maior parte das lideranças do movimento sejam conservadores, as vaias a Aécio Neves e Geraldo Alckimin, na Avenida Paulista, mostraram que a velha direita e os partidos tradicionais estão com dificuldades para se firmarem enquanto alternativa ao PT. O que aconteceu entre junho de 2013 e março de 2016?



         Os protestos de junho de 2013 tiveram um caráter anti-sistema. A indignação com os aumentos das passagens de transporte público, aliados aos gastos exagerados com as obras da Copa e a corrupção, fizeram com que milhões saíssem às ruas para protestar. As manifestações foram inicialmente convocadas pelo Movimento Passe Livre (MPL), que defende o transporte público enquanto direito de todos. Contudo, os protestos extrapolaram em muito o MPL, agregando porções da classe média, movimento estudantil, etc. As pautas se tornaram difusas. Reivindicava-se tudo e nada ao mesmo tempo. O movimento ficou sem foco. A reivindicação imediata foi alcançada: após semanas de manifestações, os aumentos das passagens de ônibus foram suspensas na maioria das cidades. Alkimin e Fernando Haddad, governador e prefeito de São Paulo, por exemplo, tiveram de torcer o nariz e cancelar o aumento do transporte público, ao menos naquele momento.
         A partir dessa primeira onda de protestos, o movimento de dispersou e se dividiu. Parte da ala anarquista passou a conformar os Black Blocks, que incluíam a ação direta como uma de suas táticas. Buscava-se combater diretamente alguns dos símbolos do capitalismo e do domínio estatal. Em alguns atos, houve depredação do patrimônio de empresas e órgãos públicos. O movimento foi duramente reprimido pela polícia militar, houve um forte movimento de criminalização por parte dos governos, que culminou, recentemente, na aprovação da famigerada Lei Anti-Terrorismo. Em um episódio emblemático, em um protesto no Rio de Janeiro, no dia 06 de fevereiro de 2014, o lançamento de um rojão causou a morte acidental de um cinegrafista da TV Band, Santiago Andrade. Era o que a mídia burguesa precisava para reforçar a campanha difamatória contra os Black Blocks. Além disso, a Rede Globo tentou convencer a população de que havia um vínculo entre os Black Blocks e o deputado estadual Marcelo Freixo, do PSOL, uma das maiores lideranças da esquerda brasileira. Sob o calor das emoções, dois ativistas foram acusados de homicídio triplamente qualificado: Fabio Raposo Barbosa e Caio Silva Souza. Eles ficaram encarcerados durante mais de um ano, até que a 8ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por unanimidade, desclassificou a denúncia contra os manifestantes e determinou sua soltura imediata.
A campanha difamatória obrigou o PSOL a responder, esclarecendo não haver vínculo entre o partido e os Black Blocks. PSTU e PCB também buscaram se diferenciar do grupo anarquista. Com isso, a mídia burguesa apostou, mais uma vez, na divisão do movimento anti-capitalista: socialistas de um lado e anarquistas de outro. O movimento socialista também já estava dividido conforme a tradição: reformistas e revolucionários. Boa parcela dos reformistas continuou apoiando o governo Dilma, contra o avanço da direita, enquanto os revolucionários buscaram se diferenciar do PT e de sua estratégia de conciliação de classe.
         A direita também tentou se organizar e se fortalecer no movimento de massas a partir de junho de 2013. Baseado nas ideias de combate a corrupção e rechaço aos programas de transferência de renda do governo, como o Bolsa Família, alguns grupos se formaram, como o “Vem pra rua” e Movimento Brasil Livre (MBL) e “Revoltados online”. Alas mais a direita chegam a pedir intervenção militar.
         Diferentemente dos Black Blocks, os grupos de direita adotaram a via pacífica nas manifestações. Isso parece ter sido decisivo para a massificação dos protestos por ela convocados, aliado ao apoio da mídia burguesa. Após os protestos de junho de 2013, a presidenta Dilma, em pronunciamento oficial, disse que somente manifestações “pacíficas e ordeiras” seriam admitidas. Ironicamente, é exatamente esse tipo de manifestação pacifista que agora afunila o seu foco e se volta contra o seu governo.
         Historicamente, as pautas negativas possuem muito mais probabilidade de se concretizarem que as pautas positivas. Participei dos protestos do “Fora Thimoty” e “Fora Arruda” em Brasília, nos anos de 2008 a 2010, e pude perceber essa tendência. As pessoas tem maior propensão a se mobilizarem contra algo do que a favor de algo. É mais fácil entrar em consenso de que o sistema político atual está falido do que chegar a um acordo sobre qual sistema defendemos para substitui-lo. Isso talvez tenha relação com o estágio de desenvolvimento espiritual em que se encontra o globo terrestre. Contudo, pode ser irresponsável protestar contra algo ou alguém sem propor algo ou alguém melhor no lugar.
         Nesse interim, duas figuras do Poder Judiciário apareceram, ao longo do processo de combate à corrupção, enquanto Salvadores da Pátria. Primeiramente Joaquim Barbosa, que protagonizou o julgamento do Mensalão, no STF, e mais recentemente o juiz federal Sérgio Moro, responsável pelo julgamento dos processos relativos à Operação Lava Jato na primeira instância. As instâncias de fiscalização, investigação, controle e julgamento passaram a ter preponderância na vida nacional, protagonizando os principais noticiários com operações espetaculosas de busca e apreensão, prisões preventivas e delações premiadas de políticos e empresários, grampos telefônicos e vazamento de informações sigilosas. Um prato cheio para a mídia sensacionalista. Na esteira da insatisfação popular com a crise econômica e a corrupção, a Polícia Federal, Ministério Público e Magistratura ganharam preponderância e se sobrepuseram ao Executivo e até mesmo ao Legislativo.
         No dia 16 de março, no entanto, Sérgio Moro cruzou, efetivamente, o limite que separa o Estado de Direito do Estado de Exceção. Ao determinar o vazamento de conversas telefônicas da presidenta e do ex-presidente  Lula, o juiz de primeira instância ultrapassou todos os limites, atuando como um xerife a serviço da oposição de direita, que possui as melhores condições de capitalizar o desgaste do governo Dilma. Após a nomeação de Lula para ocupar a Chefia da Casa Civil, Moro decidiu se vingar e divulgar ilegalmente as escutas telefônicas. O direito à privacidade e presunção de inocência foram escandalosamente violados.
         Com isso, o cenário político está em aberto. Se a presidente Dilma não conseguir se manter no governo, algumas possiblidades estão colocadas: a renúncia ou o impeachment, com ascensão de Michel Temer ao poder; cassação da chapa Dilma & Temer pelo TSE, que geraria eleições antecipadas; ou golpe militar, que seria um retrocesso sem precedentes para a democracia e as liberdades civil.
         A conjuntura pede a unificação da esquerda brasileira sob novas bases, com ética e confiança mútua. Isso inclui um diálogo maior entre os partidos de esquerda, com independência de classe, e também com o movimento anarquista e outros movimentos sociais, buscando-se formar uma frente comum de luta capaz impulsionar a nossa pauta de reivindicações, que inclui: reforma política, reforma agrária, reforma urbana, reforma tributária, auditoria de das dívidas públicas, demarcação de reservas indígenas, reestatização de empresas, apoio ao cooperativismo popular, políticas culturais contra-hegemônicas, defesa dos direitos humanos, respeito às diversidades sexuais, raciais, entre outros.

Referências: