Hoje decidi publicar um texto que escrevi a mais de dois anos atrás, após ser assaltado.
Salvador, 1 de junho de
2015
Na semana passada, fui assaltado pela primeira vez. Quatro
dias depois, fui assaltado pela segunda vez. Na primeira, o assaltante
empunhava um revolver, na segunda, uma faca.
Quando uma pessoa é assaltada, não é somente a sua vida e
sua integridade física que são colocadas a prova, mas também as suas mais
profundas convicções e valores. Num assalto, somos convidados a entregar os
nossos pertences pessoais sob a ameaça de um tiro, de uma facada ou algo do
tipo.
Foi um choque! Por mais já tivesse tentado me preparar
psicologicamente para um assalto, isso me chocou. Eu nunca tinha passado por
algo parecido: uma ameaça tão direta à minha vida. Isso me levou a pensar que a
matéria-prima principal do assaltante é o medo. Pensei, inclusive, que ele não
tinha nenhuma fonte de legitimação para aquele ato. Por que assaltar? Por que ameaçar
a vida de alguém daquela maneira? Depois pensei que havia sim fontes de
legitimação: o estado de necessidade. Aliás, isso está estabelecido na própria
legislação penal (artigo 23), como causa excludente de ilicitude. Quando uma
pessoa rouba comida porque está com fome, não pode, de acordo com a lei, ser
preso ou criminalizado, pois foi a extrema necessidade que o levou a cometer
aquele ato.
Além disso, as instituições sociais também nos assaltam
cotidianamente, sobretudo o Estado e o patrão. O primeiro nos obriga a pagar
impostos sob pena de sermos presos, pois sonegação é crime no Brasil, o segundo
nos subordina e nos explora, amparado pelas leis vigentes neste mesmo Estado. A
propriedade privada e o Estado andam juntos, e isso está no âmago do sistema
capitalista. Eles nos roubam cotidianamente. E muitos estão tão acostumados que
nem percebem ou nem se incomodam, ou às vezes até se ofendem e se incomodam,
mas desistiram de lutar coletivamente. E então passam a lutar individualmente
contra o capitalista, tornando-se mais um capitalista. Paradoxalmente, aqueles
que lutam individualmente contra o capitalismo, tornam-se capitalistas. Aquele
que faz tudo para enriquecer e sair do jugo do patrão e do Estado, acaba se
tornando um novo patrão ou burocrata. A única saída, portanto, é lutar
coletivamente contra o capitalismo, defendendo a abolição da propriedade
privada e dando início a um novo regime político, baseado na solidariedade e no
amor.
Segue um comparativo entre as três espécies de assalto: a realizada
pelo Estado, pelo patrão e pelo marginal.
Estado
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Patrão
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Marginal
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Fonte de legitimação
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A constituição e as leis
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O contrato de trabalho e a assunção dos riscos
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A necessidade
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Como ele faz para convencer você a fazer o que ele quer que você
faça?
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Educação
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Oferta de salário e vantagens.
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Pedido
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O que ele faz se você se recusar a fazer o que ele quer que você
faça?
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Ameaça de prisão
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Ameaça de demissão
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Ameaça à integridade física.
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Existe
uma relação direta entre a pobreza e a violência. Muitos dos assaltantes já
foram pedintes e/ou moradores de rua. Tanto é assim que o segundo assaltante,
após pedir o meu celular, pediu 10 centavos. 10 CENTAVOS!!! Ele estava tão
acostumado a pedir 10 centavos enquanto mendigo que, ao se tornar assaltante,
apontando uma faca nos outros, nem mudou o discurso, que já estava por demais
impregnado: “Dê qualquer coisa: 10 centavos.” Diante de uma situação como essa,
acho que a delegacia não é o melhor lugar para se fazer um boletim de
ocorrência. Devo relatar o caso ao Centro de Referência em Assistência Social
(CRAS)
Além disso, há muitas pessoas que
também roubam as outras sem apontar uma arma, por meio da corrupção, por
exemplo. Não se está aqui a justificar a violência e sim em melhor
compreendê-la para melhor combatê-la. O combate à violência urbana deve estar
aliada ao combate à propriedade privada e ao Estado. Todas as formas de
opressão e preconceito devem ser abolidas. Mas antes de combater os vícios dos
outros, temos que combater os nossos próprios. Antes de combater o capitalismo
que existe nos outros, temos que combater o capitalista que existe dentro de
nós. Antes de combater o Estado, temos que combater o ditadorzinho que existe
dentro de nós. Antes de tirar o cisco que está no olho dos outros, temos que
tirar a trava que está em nosso próprio olho. Assim poderemos enxergar melhor o
cisco que está no olho do outro.
Devo
confessar que, em certos momentos, senti desolação pelo ocorrido e até raiva
dos assaltantes. Mas, depois de colocar as ideias no lugar, devo dizer que não
arredo pé em nenhum centímetro das minhas convicções espirituais e políticas.
Apresento,
portanto, algumas ideias da esquerda e dos direitos humanos sobre como combater
a violência urbana:
1)
Redução drástica das desigualdades sociais e melhoria de
distribuição da renda e da propriedade;
2)
Melhoria das políticas sociais: educação,
assistência social, saúde, cultura, etc.
3)
Combate intransigente ao desemprego. É
inadmissível que, em uma sociedade, existam pessoas que procuram emprego e não
encontrem. É preciso melhorar a quantidade e a oferta de empregos. A criação de
empregos públicos é uma das formas de o Estado combater o desemprego. O
incentivo ao cooperativismo é outra forma de combater o desemprego.
4)
Liberalização e regulamentação de todas as
drogas. A política de guerra às drogas é a política pública mais fracassada de
toda a história da humanidade. Precisamos de uma política pública focada na
ampliação das liberdades e não na restrição. Assim, a atuação do Estado deve
ser focada em dar oportunidade de saída das drogas. Há muitas pessoas que
querem largar o vício das drogas e não tem um tratamento adequado. Imagine se o
dinheiro gasto na repressão e nas prisões fosse usado em tratamentos
psicológicos, médicos e de assistência social para aqueles que querem se tratar
e largar o vício?
Ao mesmo tempo, sinto que estão
reforçadas e revigoradas as minhas convicções espirituais. Como diria Mahatma
Gandhi: “os poderosos podem prender e vilipendiar o seu corpo, mas jamais
aprisionarão a sua alma”. Nosso espírito é irremediavelmente livre e imortal.
Somos espíritos imateriais e imortais, temporariamente encarnados em um corpo
material, em um invólucro biológico que pode ser perdido a qualquer momento. O
corpo é uma espécie de prisão-escola. Temos muitas coisas a aprender enquanto
estamos encarnados, mas não podemos nos esquecer de que este corpo é uma
prisão, que limita a nossa capacidade de deslocamento, além de nos impor uma
série de necessidades: comer, dormir, etc.
Estamos em um caminho de
progresso espiritual e nos tornamos cada vez mais livres, na medida em que
compreendemos as leis de Deus e as aplicamos em nossas vidas. A primeira delas
é a lei do amor e do perdão. Fazer o bem sem olhar a quem, perdoar as ofensas e
seguir em paz, de cabeça erguida, sem nenhum sentimento de culpa, inveja, pena
ou medo.
As
portas do futuro estão abertas para nós. Cabe a nós fazermos com que este
futuro seja repleto de amor, paz, fraternidade, igualdade e liberdade.
Diante da crise, eu aposto todas as minhas fichas no amor.
A Deus, a você, a mim, à humanidade, à natureza...
O perdão desbloqueia nossas vias espirituais
E deixa o amor fluir tranquilamente.
“Deixe-me dizer, sem medo de parecer ridículo,
Que o verdadeiro revolucionário é movido por grandes
sentimentos de amor.” (Che Guevara)
“Não se combate o ódio com o ódio. O ódio só pode ser
combatido com o amor.” O amor é a melhor resposta que podemos dar aos
assaltantes, aos patrões e aos ditadores. É a melhor forma de dizer que eles
não venceram, que nós continuamos lutando por um mundo melhor. E que não
desistiremos nunca!
“Os idealistas são incorrigíveis. Se lhe roubam o céu, eles
fazem do inferno o seu céu.” Nietzsche