sábado, 28 de outubro de 2017

Ensaio sobre o assalto

Hoje decidi publicar um texto que escrevi a mais de dois anos atrás, após ser assaltado.

Salvador, 1 de junho de 2015

Na semana passada, fui assaltado pela primeira vez. Quatro dias depois, fui assaltado pela segunda vez. Na primeira, o assaltante empunhava um revolver, na segunda, uma faca.

Quando uma pessoa é assaltada, não é somente a sua vida e sua integridade física que são colocadas a prova, mas também as suas mais profundas convicções e valores. Num assalto, somos convidados a entregar os nossos pertences pessoais sob a ameaça de um tiro, de uma facada ou algo do tipo.
Foi um choque! Por mais já tivesse tentado me preparar psicologicamente para um assalto, isso me chocou. Eu nunca tinha passado por algo parecido: uma ameaça tão direta à minha vida. Isso me levou a pensar que a matéria-prima principal do assaltante é o medo. Pensei, inclusive, que ele não tinha nenhuma fonte de legitimação para aquele ato. Por que assaltar? Por que ameaçar a vida de alguém daquela maneira? Depois pensei que havia sim fontes de legitimação: o estado de necessidade. Aliás, isso está estabelecido na própria legislação penal (artigo 23), como causa excludente de ilicitude. Quando uma pessoa rouba comida porque está com fome, não pode, de acordo com a lei, ser preso ou criminalizado, pois foi a extrema necessidade que o levou a cometer aquele ato.

Além disso, as instituições sociais também nos assaltam cotidianamente, sobretudo o Estado e o patrão. O primeiro nos obriga a pagar impostos sob pena de sermos presos, pois sonegação é crime no Brasil, o segundo nos subordina e nos explora, amparado pelas leis vigentes neste mesmo Estado. A propriedade privada e o Estado andam juntos, e isso está no âmago do sistema capitalista. Eles nos roubam cotidianamente. E muitos estão tão acostumados que nem percebem ou nem se incomodam, ou às vezes até se ofendem e se incomodam, mas desistiram de lutar coletivamente. E então passam a lutar individualmente contra o capitalista, tornando-se mais um capitalista. Paradoxalmente, aqueles que lutam individualmente contra o capitalismo, tornam-se capitalistas. Aquele que faz tudo para enriquecer e sair do jugo do patrão e do Estado, acaba se tornando um novo patrão ou burocrata. A única saída, portanto, é lutar coletivamente contra o capitalismo, defendendo a abolição da propriedade privada e dando início a um novo regime político, baseado na solidariedade e no amor.
Segue um comparativo entre as três espécies de assalto: a realizada pelo Estado, pelo patrão e pelo marginal.


Estado
Patrão
Marginal
Fonte de legitimação
A constituição e as leis
O contrato de trabalho e a assunção dos riscos
A necessidade
Como ele faz para convencer você a fazer o que ele quer que você faça?
Educação
Oferta de salário e vantagens.
Pedido
O que ele faz se você se recusar a fazer o que ele quer que você faça?
Ameaça de prisão
Ameaça de demissão
Ameaça à integridade física.

                Existe uma relação direta entre a pobreza e a violência. Muitos dos assaltantes já foram pedintes e/ou moradores de rua. Tanto é assim que o segundo assaltante, após pedir o meu celular, pediu 10 centavos. 10 CENTAVOS!!! Ele estava tão acostumado a pedir 10 centavos enquanto mendigo que, ao se tornar assaltante, apontando uma faca nos outros, nem mudou o discurso, que já estava por demais impregnado: “Dê qualquer coisa: 10 centavos.” Diante de uma situação como essa, acho que a delegacia não é o melhor lugar para se fazer um boletim de ocorrência. Devo relatar o caso ao Centro de Referência em Assistência Social (CRAS)
Além disso, há muitas pessoas que também roubam as outras sem apontar uma arma, por meio da corrupção, por exemplo. Não se está aqui a justificar a violência e sim em melhor compreendê-la para melhor combatê-la. O combate à violência urbana deve estar aliada ao combate à propriedade privada e ao Estado. Todas as formas de opressão e preconceito devem ser abolidas. Mas antes de combater os vícios dos outros, temos que combater os nossos próprios. Antes de combater o capitalismo que existe nos outros, temos que combater o capitalista que existe dentro de nós. Antes de combater o Estado, temos que combater o ditadorzinho que existe dentro de nós. Antes de tirar o cisco que está no olho dos outros, temos que tirar a trava que está em nosso próprio olho. Assim poderemos enxergar melhor o cisco que está no olho do outro.
                Devo confessar que, em certos momentos, senti desolação pelo ocorrido e até raiva dos assaltantes. Mas, depois de colocar as ideias no lugar, devo dizer que não arredo pé em nenhum centímetro das minhas convicções espirituais e políticas.

                Apresento, portanto, algumas ideias da esquerda e dos direitos humanos sobre como combater a violência urbana:

1)      Redução drástica das desigualdades sociais e melhoria de distribuição da renda e da propriedade;
2)      Melhoria das políticas sociais: educação, assistência social, saúde, cultura, etc.
3)      Combate intransigente ao desemprego. É inadmissível que, em uma sociedade, existam pessoas que procuram emprego e não encontrem. É preciso melhorar a quantidade e a oferta de empregos. A criação de empregos públicos é uma das formas de o Estado combater o desemprego. O incentivo ao cooperativismo é outra forma de combater o desemprego.
4)      Liberalização e regulamentação de todas as drogas. A política de guerra às drogas é a política pública mais fracassada de toda a história da humanidade. Precisamos de uma política pública focada na ampliação das liberdades e não na restrição. Assim, a atuação do Estado deve ser focada em dar oportunidade de saída das drogas. Há muitas pessoas que querem largar o vício das drogas e não tem um tratamento adequado. Imagine se o dinheiro gasto na repressão e nas prisões fosse usado em tratamentos psicológicos, médicos e de assistência social para aqueles que querem se tratar e largar o vício?

Ao mesmo tempo, sinto que estão reforçadas e revigoradas as minhas convicções espirituais. Como diria Mahatma Gandhi: “os poderosos podem prender e vilipendiar o seu corpo, mas jamais aprisionarão a sua alma”. Nosso espírito é irremediavelmente livre e imortal. Somos espíritos imateriais e imortais, temporariamente encarnados em um corpo material, em um invólucro biológico que pode ser perdido a qualquer momento. O corpo é uma espécie de prisão-escola. Temos muitas coisas a aprender enquanto estamos encarnados, mas não podemos nos esquecer de que este corpo é uma prisão, que limita a nossa capacidade de deslocamento, além de nos impor uma série de necessidades: comer, dormir, etc.
Estamos em um caminho de progresso espiritual e nos tornamos cada vez mais livres, na medida em que compreendemos as leis de Deus e as aplicamos em nossas vidas. A primeira delas é a lei do amor e do perdão. Fazer o bem sem olhar a quem, perdoar as ofensas e seguir em paz, de cabeça erguida, sem nenhum sentimento de culpa, inveja, pena ou medo.
                As portas do futuro estão abertas para nós. Cabe a nós fazermos com que este futuro seja repleto de amor, paz, fraternidade, igualdade e liberdade.

Diante da crise, eu aposto todas as minhas fichas no amor.
A Deus, a você, a mim, à humanidade, à natureza...
O perdão desbloqueia nossas vias espirituais
E deixa o amor fluir tranquilamente.
“Deixe-me dizer, sem medo de parecer ridículo,
Que o verdadeiro revolucionário é movido por grandes sentimentos de amor.” (Che Guevara)

“Não se combate o ódio com o ódio. O ódio só pode ser combatido com o amor.” O amor é a melhor resposta que podemos dar aos assaltantes, aos patrões e aos ditadores. É a melhor forma de dizer que eles não venceram, que nós continuamos lutando por um mundo melhor. E que não desistiremos nunca!


“Os idealistas são incorrigíveis. Se lhe roubam o céu, eles fazem do inferno o seu céu.” Nietzsche