“Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá”
Chico Buarque
É
difícil negar que o Brasil está passando por uma onda conservadora. Em 2014,
foi eleito o congresso nacional mais conservador desde a ditadura militar. Setores
das igrejas neopentecostais, juntamente com setores do empresariado e classe média
descontente com o governo e a crise econômica conseguiram aproveitar o momento
político para ampliar o seu poder. Esse processo culminou na destituição da presidenta Dilma e na ascensão de seu vice, Michel Temer, de perfil mais conservador. Prova disso é que ele compôs um
ministério somente com homens brancos. Trata-se de um governo que visa aprofundar o duro ajuste fiscal que já vinha sendo implementado pela sua antecessora. Esse ajuste inclui privatizações, concessões de serviços públicos
para iniciativa privada, arrocho salarial e interrupção dos concursos públicos,
o que implica, em certa medida, em um desmantelamento do Estado, com sérios riscos para as políticas
públicas que vinham sendo construídas. Ao mesmo tempo, a ascensão de Temer está
relacionada a um movimento de limpeza ética, que pretendia retirar as pessoas
corruptas do poder. Isso é uma grande contradição, pois Temer também está envolvido
com esquemas questionáveis de financiamento eleitoral.
Foto de Gilherme Boulos, um dos grandes líderes políticos que estão emergindo desse movimento de resistência.
Diante
disso, os movimentos populares têm iniciado um movimento de resistência,
buscando a manutenção das políticas sociais e evitar a retirada de direitos.
Então vale perguntar, o que é esse movimento de resistência?
Temos
que tomar muito cuidado para não nos tornarmos uma esquerda raivosa, eivada de
rancor e mágoa para com as pessoas que pensam diferente de nós. Talvez seja o
caso de a esquerda mostrar a outra face. Há uma passagem bíblica em que Jesus
diz: “Se derem um tapa em sua face direita, ofereça também a esquerda.” Por
muito tempo, essa frase tem sido mal interpretada. Muitos interpretam como um
ato de covardia e de fraqueza oferecer a outra face. Contudo, vale explicar o
verdadeiro sentido dessa sentença, que me foi passada pelo querido Evaristo
Nunes: mostrar a outra face não significa aceitar a violência sem nenhuma
resistência. Trata-se de uma metáfora, na qual mostrar a outra face significa
mudar a sua postura, mudar o seu comportamento. Assim, diante do golpeachment,
a esquerda brasileira é convidada a mudar a sua postura, procurando agir de uma
maneira mais inteligente, de modo a evitar que situações como essas voltem a
ocorrer. Não adianta responder à violência com mais violência. Temos que
responder à violência com inteligência e criatividade.
É o momento
de fazer uma profunda auto-crítica, reconhecendo os nossos erros e também os
nossos acertos. Sabemos que os esquemas de corrupção na Petrobras foram um
erro. O mesmo vale para o mensalão e todos os desvios éticos que ocorreram ao
longo destes 13 anos do PT no governo federal. Um grande erro foi não ter feito
uma auditoria da dívida pública, que poderia ter passado a limpo todo esse
processo obscuro de endividamento público, que absorve grande parte do nosso
orçamento e serve de pretexto para o ajuste fiscal realizado pelo governo
atual. O PT não promoveu a democratização da comunicação e pagou um preço muito
alto por isso. A mídia continua sendo dominada por um seleto grupo de pessoas,
bastante identificada com os valores capitalistas. Da mesma forma, é importante
reconhecer os avanços em termos de políticas sociais, com destaque para a
expansão das universidades públicas, fortalecimento do SUS, do Sistema Único de
Assistência Social (SUAS) e todas as suas políticas, o Bolsa Família, que tirou
milhões de pessoas da fome, o fortalecimento das políticas culturais, com a
criação do Sistema Nacional de Cultura, o Programa de Aquisição de Alimentos,
entre tantas outras.
Buda diz: “A mudança não é dolorosa. A resistência à mudança
é.”
É interessante que Buda fala sobre a resistência e não sobre
o movimento de resistência. Esse ponto é muito importante. Não se trata de
resistir à mudança. Trata-se de desenvolver, junto com seus pares, um movimento
de resistência à mudança. Quando falamos em uma onda reacionária, estamos
falando de uma resistência à onda progressista que havia ocorrido antes. Dentro
desse pensamento dicotômico, é razoável pensar que, depois da onda reacionária,
haverá uma nova onda progressista. O que é interessante notar é que, ao longo
dessas ondas de progresso e de reação, existe um processo maior de progresso,
de modo que a sociedade parece se desenvolver por meio de ciclos ascendentes de
progresso e reação. As ondas reacionárias não conseguem retirar todos os
avanços sociais conquistados ao longo do período de progresso, apenas alguns.
Por exemplo, não se vê ninguém propondo, deliberadamente, que os negros voltem
a ser escravizados. Da mesma forma, não se vê ninguém propondo que as mulheres
percam o direito ao voto. Talvez porque essas conquistas já estejam sedimentadas,
já tenham sido internalizadas na cultura de tal forma que não se pensa mais em
retornar para o passado de modo tão brusco. Ao mesmo tempo, isso não significa
que não haja machismo ou racismo na sociedade atual. Sabemos que há, e muito!
Sabemos também que essa onda reacionária está relacionada ao incômodo sentido
por determinados setores com os avanços dos direitos sociais para amplas
camadas da sociedade. Apesar de isso não ser dito deliberadamente pelos
conservadores, parece que é algo impresso no subconsciente e que emerge por
meio de determinados atos e palavras. A composição ministerial exclusivamente
masculina é um exemplo disso.
Desse modo, o nosso movimento de resistência é, antes de
tudo, um movimento, é algo que não está pronto e acabado, mas que se faz ao
longo do processo. Não temos o controle desse movimento de resistência e também
não temos uma pauta única e acabada, temos algumas ideias que vão se misturando
com outras ideias e formando outras ideias. Ideias essas que também se misturam
com outras ideias e formam novas ideias. Plantando a cada dia uma sementinha,
por meio de atos sublimes de amor, vamos, aos poucos, formando um caldo que,
quando estiver no ponto, será generosamente servido ao nosso povo, por meio de
um novo governo de cunho progressista.
O movimento de resistência não deve ser saudosista,
apontando para um passado supostamente idílico. O movimento deve apontar para o
futuro e apresentar propostas que encontrem ressonância nos corações e mentes
da classe trabalhadora e de todos que desejam o progresso social e humano.
O movimento de resistência não deve ser um processo de enrijecimento, no qual nos tornamos duros, rígidos, recalcados com a perda do poder. Ele deve ter a leveza de quem acompanha as mudanças de seu tempo, cientes das suas limitações, aberto ao novo, com renovada esperança, bom ânimo e foco no futuro que será certamente melhor. "É preciso arrancar alegria ao futuro", como diz Vladimir Maiakovski.
O movimento de resistência deve ser, antes de tudo, artístico e filosófico.
Ironicamente, foi na ditadura militar que conhecemos a roda viva de Chico
Buarque e nos emocionamos com o bêbado e o equilibrista de Elis Regina. Hoje estamos
atravessando uma onda reacionária. Com nosso esforço, ela irá se transformar em
uma marolinha. Que possamos transformar a raiva e o ressentimento em inspiração
para construir as mais belas poesias, canções e discursos. Que a revolução
brasileira seja a mais linda e pacífica de todas.
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