domingo, 17 de julho de 2016

Colocando a guerrinha para descansar

Um certo dia foi surpreendido com a seguinte frase: “As pessoas entram em conflito por almejarem o mesmo objetivo.” Não me lembro o autor, foi dita no meio de um texto sobre greve na educação em um blog. Já faz uns anos. Mas essa frase me marcou muito. Eu medito sobre ela até hoje.

À primeira vista, recebi a frase com grande incômodo e provocação. “Como assim, as pessoas entram em conflito por almejarem os mesmos objetivos?” Em um conflito, os objetivos são diferentes, cada um defende seu ponto de vista, argumenta, são motivos diferentes, não?

Ao mesmo tempo em que me senti provocado, também abri um sorriso. Um sorriso daqueles que gostam de ser provocados. Pra falar a verdade, foi uma deliciosa provocação filosófica. E foi dita como uma frase meio óbvia, no meio de um texto grande. Mas, de repente, aquela frase se destacou, como se acendesse um pisca-pisca. A frase realmente me chamou a atenção.

“As pessoas entram em conflito por almejarem o mesmo objetivo.”

É um tapa na cara de qualquer militante político como eu. Um tapa na cara!

Mas enfim, passado o atordoamento causado pela bordoada, vamos à reflexão. Será que essa frase faz algum sentido? Se um candidato de direita e um candidato de esquerda estão disputando a presidência da república, eles têm o mesmo objetivo? Se dois países estão em guerra, eles têm o mesmo objetivo? À primeira vista não, pois um candidato de esquerda que reduzir as desigualdades sociais, e o candidato de direito quer ou aceita mantê-las, de acordo com a noção de Bobbio de direita e esquerda. 
No caso, da guerra, um país pode entrar em conflito com outro para defender as suas fronteiras diante de uma invasão. Enquanto um está invadindo, o outro está se defendendo. Seriam objetivos diferentes.

Contudo, se olharmos por outro ângulo, a frase faz algum sentido: tanto o candidato de direito quanto o candidato de esquerda almejam ocupar o cargo de presidente da república, ambos os candidatos acreditam que, ao ocupar aquele cargo, eles terão poder para implementar um projeto político, ambos acreditam no poder exercido pelo presidente da república e almejam exercem esse poder. O objetivo imediato é basicamente o mesmo, embora os projetos políticos a serem implementados sejam diferentes.

No caso de uma guerra, a questão é basicamente a mesma. Ambas as forças envolvidas almejam obter o domínio político do território em disputa. Eles se igualam em relação ao objetivo imediato ali colocado. Geralmente, a fonte de legitimidade que se argumenta para garantir a posse do território é: “Nós chegamos primeiro aqui nessa terra. Essa terra é nossa e não de vocês. Vaza!!!” Os oponentes podem dizer: “Nós temos o direito de ocupar esse território, é um destino manifesto! Deus quis assim.”, para usar o argumento levantado pelos ingleses para invadirem a América do Norte e guerrearem contra os indígenas.”

Em uma greve, por exemplo, temos dois lados em conflito: os trabalhadores, que querem melhores salários e melhores condições de trabalho; e os patrões, que querem arrochar o salário e ampliar suas margens de lucro. Visto por outro ângulo, há trabalhadores parados, patrões preocupados com a saúde financeira da organização, e usuários sem receberem o serviço ou produto. Visto por outro ângulo, há duas partes em conflito, ambas desejando ter os desejos atendidos e objetivos atingidos.

Passemos a analisar o caso do assaltante e do assaltado. O assaltante mostra a arma e pede o celular e carteira. Ele está disposto a trocar a vida do assaltado pelo seu celular e carteira. Enquanto o assaltante, por meio da ameaça, quer subtrair os pertences da vítima. O assaltado deseja manter a posse da carteira e do celular. Aí está constituído o conflito. Ambos almejam a posse dos mesmos objetos materiais, possuem o mesmo objetivo. A vida carnal do assaltado, que também é um objeto material, está em jogo. A sua vida espiritual, que é imortal, não está em jogo. O assaltado tem a opção de entregar os pertences ou reagir ao assalto e arriscar a vida. Sempre temos uma alternativa.

O mesmo ocorre numa disputa por emprego, num concurso público, por exemplo. Há uma suposta competição para ocupação de vagas supostamente escassas. Digo supostamente porque, se o Estado assumisse o compromisso de garantir o pleno emprego, não deveria haver essas lutas fratricidas por vagas no “mercado de trabalho”. Aliás, o trabalho não deveria ser vista como uma mercadoria, mas como um direito e um dever do cidadão.

Com as “disputas amorosas” não é diferente. Quando dois homens entram em disputa por uma mulher, ambos almejam o mesmo objetivo imediato: a conquista da mulher. Neste ponto, é interessante notar que esse tipo de disputa ocorre, salvo engano, em praticamente todas as espécies de mamíferos. Inclusive os animais herbívoros, que não utilizam a agressividade para a busca do alimento, entram em ferozes brigas pelo domínio do território e das fêmeas. A briga de galo talvez seja a mais famosa, mas esse fenômeno também é visto em girafas e muitos outros animais. O ciúme e a disputa pela exclusividade sexual do parceiro pode, portanto, ser reflexo de um primitivismo latente.

O mesmo ocorre em competições esportivas. Os atletas e clubes entram em disputa porque todos querem vencer o jogo e ser campeão. Cria-se uma suposta escassez do título de campeão para incentivar as disputas e rivalidades. Um primitivismo talvez.

Se formos para o caso da derrocada do PT no Brasil, temos uma situação parecida. O PT diz: “Nós vencemos a eleição e temos legitimidade para governar.” A oposição de direita diz: “Houve crime de responsabilidade e, portanto, o impeachment está justificado.” Em comum, temos o fato de que ambos almejam ocupar o cargo de presidente da república e exercer o Poder Executivo do país.

Esse fenômeno, que podemos chamar de igualdade das razões opostas, não deixa de ser interessante, muito muito curioso. Nós temos a tendência de essencializar as relações. Confundimos a aparência com a essência. Os conflitos que enfrentamos são aparentes. O nosso espírito imortal é a essência. Na realidade, temos o branco e o preto dentro de nós, o trabalhador e o patrão dentro de nós, o ladrão e a vítima, a mulher e o homem, a direita e esquerda, o bêbado e o equilibrista dentro de nós.

O que eu proponho? A arte!



A arte destrava todos os conflitos, mexe nas entranhas, limpa os poros da razão. Desequilibra e reequilibra.


Lute! Lute sempre! E lute com arte! Lute com um espírito de desapego que a dignifique! Ame o seu oponente como ama a si mesmo. Só assim poderemos vencer a guerra, que é muito mais interna do que externa.

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Muito bom seu texto, essa questão do conflito por um objetivo comum é muito interessante. Faz muito sentido, pois nossa sociedade vive em conflito, as minorias que são descriminadas por exemplo, só querem a legitimidade que o grupo dominante possui e nega aos grupos dominados. Esse conflito gera muita violência, sofrimento e exclusão.

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  3. Gostei muito do texto! Abordou uma perspectiva interessante dos conflitos nos mais variados níveis de análise.

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